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22/12/2020
Pesquisa sobre as características dos queijos artesanais da região do Serro, que reúne 11 municípios localizados a cerca de 300 km a nordeste de Belo Horizonte, apresentou dados inéditos sobre sua qualidade, tipicidade e identidade.
O estudo avaliou aspectos de queijos artesanais do Serro ao longo do seu processo de maturação, em condições ambientais. As cientistas realizaram análises físico-químicas, entre elas, a proteólise – que avalia as alterações proteicas que ocorrem durante a maturação dos queijos – considerada importante para avaliação da qualidade do produto. Da mesma forma, foram analisados parâmetros de umidade, relacionados às características particulares dos queijos e das condições dos locais de maturação do produto. “Os resultados foram surpreendentes: indicaram que cada propriedade rural da região possui um microclima diferente, que influencia na maturação e no terroir do queijo. Além disso, com a variação de temperatura e umidade ao longo do ano, os queijos produzidos no inverno se mostraram diferentes daqueles fabricados no verão”, conta Juliana Carneiro, doutora em Alimentos e Nutrição pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Carneiro conduziu a pesquisa sob orientação da professora Maria Gabriela B. Koblitz, da Unirio, e da pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos (RJ) Ana Carolina S. Doria Chaves.
Também foi avaliada a influência da etapa de lavagem da casca nas características finais do produto, em termos de segurança e qualidade para o consumo. “As análises microbiológicas indicaram que não houve variação ao longo do tempo de maturação, ou seja, os queijos que já estavam seguros para o consumo desde o primeiro dia continuaram assim ao longo do tempo”, afirma a pesquisadora da Embrapa Ana Carolina Chaves.
De acordo com a legislação estadual vigente, o queijo minas do Serro, por ser produzido com leite cru, deve ser maturado na propriedade de origem por, pelo menos, 17 dias.
Patrimônio brasileiro e indicação geográficaCafé com queijo minas artesanal. A forma típica de receber visitas no meio rural em Minas Gerais carrega uma tradição reconhecida como patrimônio imaterial pelo Instituto Histórico Nacional (Iphan): o modo de produção artesanal de queijos. Aqueles produzidos nas regiões montanhosas do Serro em Minas Gerais também receberam o registro de indicação geográfica (IG) do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que garante a exclusividade no uso dessa denominação para os produtores de queijos artesanais da região. Inicialmente eram dez municípios da Serra do Espinhaço, que pertenciam à região do Serro. Atualmente são 11 cidades. Fotos: Juliana Carneiro |
O queijo minas artesanal do Serro, em geral, é produzido em pequenas propriedades rurais distribuídas por 11 municípios da região, seguindo um “saber-fazer” transmitido de geração para geração, com leite bovino cru, “pingo” e coalho. O “pingo” é um soro-fermento salgado que contém diferentes bactérias láticas, obtido da dessoragem dos queijos fabricados nos dias anteriores. Cada propriedade tem o seu próprio “pingo”, que pode ser influenciado pelas condições ambientais e características. O coalho é responsável pela coagulação enzimática do leite e influência na proteólise. A combinação particular do coalho com o “pingo” e as etapas de produção e maturação desses queijos de leite cru conferem atributos sensoriais únicos que permitiram a sua notoriedade por parte dos consumidores e consequente registro de indicação geográfica (IG).
Outra característica marcante é o processo de maturação, que deve ser realizado na propriedade rural, e provoca alterações bioquímicas e físicas ao longo do tempo, podendo ultrapassar 60 dias. “É o que dá o diferencial do queijo do Serro, um produto com alto valor agregado, bem diferente de um produto agroindustrial”, esclarece Túlio Madureira, da grife de queijos Trem-ruá, localizada no centro histórico da cidade do Serro.
Nos queijos típicos do Serro, a casca do queijo é lavada e escovada a cada três dias, em um processo artesanal chamado de “ralação ou grossagem”, conduzido pelo affinneur (afinador, em francês), conhecido como “mestre queijeiro”. Tipicamente, os queijos do Serro possuem aparência amarela e seca, e isso tem uma explicação histórica. Antigamente, a maturação dos queijos produzidos nas propriedades rurais do Serro ocorria nos lombos de burros, em uma viagem que levava mais de 40 dias até os grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro.
Recentemente, já superada a dificuldade logística histórica e em busca de inovação, alguns produtores rurais têm optado por não realizar a lavagem regular da casca, resultando em um queijo diferenciado, com maior valor agregado. “Observamos que, por estarmos localizados em uma região úmida, de Mata Atlântica, há um favorecimento natural de surgimento e crescimento de fungos. Então, começamos a dominar os fungos para que desenvolvam um produto diferenciado em aroma, sabor, textura e aparência (casca escura e enrugada), muito apreciado pelos consumidores”, revela o produtor rural Túlio Madureira. Esse tipo de queijo de casca fungada pode ser vendido a um preço até seis vezes superior ao produto tradicional de cor amarela, de casca lavada. E foram esses queijos, de casca fungada, que conquistaram prêmios em um concurso internacional na França em 2019.
Os queijeiros franceses, considerados entre os melhores do mundo, atuam com esses fatores ambientais para produzir mais de 400 tipos de queijos na França. “Fungos, ácaros e bactérias de grau alimentício, que se multiplicam nas cascas dos queijos, produzem enzimas que alteram o sabor, o aroma e a textura dos queijos. Na França, ocorre a maturação de queijos dentro de rochas e cavernas, que mantém a temperatura amena e a umidade adequada, favorecendo a multiplicação de fungos que conferem características sensoriais particulares”, explica Chaves. Segundo ela, em Minas Gerais já estão ocorrendo algumas experimentações similares.
A pesquisadora conta também que as alterações na tradição de produção artesanal de queijo na região do Serro recebem críticas e resistências dos mais conservadores. No entanto, as mudanças devem ser consideradas como algo próprio do processo sociocultural, conforme defende o pesquisador da Embrapa Rodrigo Paranhos, um dos editores do livro Queijo Minas Artesanal: Valorizando a Agroindústria Familiar. “A indicação geográfica não é estática. Podem ocorrer inovações nas tradições”, afirma o cientista. Para ele é natural que, ao logo do tempo, os produtores rurais, detentores do “saber-fazer”, aprimorem o processo de produção adaptando-se às mudanças sociais e culturais.
Resultado desse processo inovativo, os queijos com casca fungada da região do Serro (MG) foram os mais apreciados pelos consumidores em análise sensorial realizada na Embrapa Agroindústria de Alimentos. No teste, foram avaliadas amostras provenientes de três propriedades rurais com 17, 30 e 60 dias de maturação. A caracterização sensorial foi realizada por meio de testes de aceitação, de aparência e de sabor-aroma-textura. Também foi aplicado questionário Cata para levantar os atributos de sabor, cor, textura e aparência para caracterizar as diferentes amostras de queijo.
“A ausência da lavagem da casca ocasionou modificações significativas nas características dos queijos, tanto nas relacionadas ao perfil de proteólise, quanto em relação às características sensoriais e análises instrumentais”, aponta Chaves. Na avaliação global, os queijos fungados foram os mais bem aceitos pelos provadores devido ao seu sabor, aroma e textura agradáveis. Em termos de aparência e cor, os consumidores preferem o queijo tradicional amarelo e de casca lisa, mas em questão de aroma, textura e sabor os queijos fungados foram mais apreciados. As cascas dos queijos foram retiradas na análise sensorial para não influenciar no resultado.
Em geral, também foi observada a diminuição de umidade e o aumento de firmeza dos produtos ao longo da maturação. No inverno, os queijos mais aceitos foram os maturados por 17 dias, descritos como "macio", "cremoso" e " úmido", enquanto no verão, os queijos maturados por 60 dias – similares a um queijo Parmesão – tiveram maior aceitação e foram descritos pelos avaliadores como “ressecados”, “firmes” e de “casca grossa”.
As variações identificadas nos queijos produzidos na região do Serro dependem não apenas da estação do ano e do tempo de maturação, segundo a pesquisa realizada. As condições de temperatura e umidade do espaço de maturação dos queijos nas propriedades, as características do leite cru utilizado, do controle do rebanho, da alimentação dos animais, entre outros aspectos, interferem no produto final. Por serem artesanais, esses queijos são únicos e apresentam pequenas variações na produção nas diferentes propriedades.
Queijos artesanais são patrimônio nacionalOs queijos artesanais são produzidos de forma manual, em geral a partir de leite proveniente de rebanho da própria fazenda onde ocorre o processamento, podendo o e leite sofrer ou não tratamento térmico (pasteurização). Na fabricação, se destaca o trabalho do mestre queijeiro. O único processo mecânico permitido é na ordenha do rebanho leiteiro, o que garante um produto de sabor e características peculiares. Segundo o último Censo Agropecuário realizado em 2017 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há no Brasil aproximadamente 175 mil produtores de queijo, sendo mais de 140 mil agricultores familiares, que juntos produzem cerca de 220 toneladas anualmente. Mais de 30 mil pequenos produtores de queijo se encontram no estado de Minas Gerais, sendo que os queijos produzidos nas regiões da Canastra e do Serro foram registrados nos Livros de Saberes do Iphan como patrimônio imaterial por seu valor histórico e cultural. A arquitetura colonial composta pelos casarios do século XVIII também recebeu tombamento histórico como patrimônio material. Essa riqueza gera emprego e renda para a economia local com o turismo rural e a comercialização de alimentos produzidos pelas famílias ao longo de séculos, em uma tradição que passa de pai para filho. O proprietário da Fazenda Santo Antônio, Túlio Madureira, é da quinta geração de pequenos produtores de queijo artesanal da região do Serro e sempre se lembra do ensinamento de seu pai, escrito nas paredes de sua pequena loja de queijos Trem-ruá, na cidade do Serro, em Minas Gerais: “O queijo é vivo, a gente só dá a ele o tempo para se expressar”. A expressão de um produto genuinamente brasileiro, que carrega uma tradição de mais 300 anos, conquista cada vez mais o paladar e a mesa dos consumidores brasileiros. Fotos: Juliana Carneiro (queijos em processamento) e Rodrigo Paranhos (casario) |
Fonte: Embrapa Agroindústria de Alimentos