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26/10/2020
Um método pioneiro de manejo da pecuária provocou a regeneração de butiazais no Pampa, bioma que engloba Uruguai, parte da Argentina, sul do Brasil, e o extremo sul do Paraguai. A pesquisa inédita já obteve o repovoamento de butiazais centenários com, pelo menos, 6,5 mil novas palmeiras em fase de crescimento.
Palmeira típica daquele bioma, o butiazeiro gera o butiá, fruto amarelo que se tornou parte da identidade local. A planta e seu fruto são usados, por exemplo, como símbolos em brasões e hinos de cidades uruguaias e gaúchas. Porém, nas últimas décadas, foi observado um declínio das populações de várias espécies de butiás que ocorrem nesses campos. Esse problema é provocado, especialmente, pelas expansões urbanas e agropecuárias.
Com foco nesse problema, a equipe do pesquisador Ênio EgonSosinski Júnior, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (DF), testou um método para manejar o gado que permite ao produtor preservar e repovoar os butiazais sem perder área de pastagem.
O estudo propõe a retirada dos animais antes do inverno,no outono, para pastejar em outras áreas (piquetes com pasto nativo, pastagens e na resteva do arroz). No experimento, a prática permitiu que novas palmeiras se desenvolvessem o suficiente para repovoar o butiazal.
O que é butiá?
Butiá é um gênero de palmeiras (família Arecaceae) que ocorre na América do Sul. Reúne em torno de 21 espécies distribuídas no Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai. Entre elas, Butiaodorata é a que apresenta distribuição mais ao sul, é nativa no Bioma Pampa, e ocorre somente no Rio Grande do Sul e no leste do Uruguai. Essas palmeiras, denominadas de butiazeiros ou butiás, formam agrupamentos naturais conhecidos como butiazais ou palmares, com densidades que variam desde poucas dezenas até mais de seiscentas plantas por hectare em alguns locais.
Esses agrupamentos são encontrados principalmente em regiões planas, próximos às lagunas que ocorrem no sul do Brasil e no leste do Uruguai. Os ecossistemas de butiazais são reconhecidos por seu valor paisagístico, de biodiversidade e histórico-cultural. Compreende uma valiosa diversidade de flora e fauna nativa associada. Os campos nativos associados aos butiazais também abrigam uma diversidade de espécies herbáceas, principalmente de gramíneas, com reconhecido valor forrageiro. Os butiazais são fonte de alimento para diversos animais da fauna nativa.
Isso ocorre porque o gado é retirado da área das palmeiras entre os meses de abril a setembro e, ao voltar na primavera, já com mais peso e idade, encontra butiazeiros de maior porte com folhas que não apetecem o paladar dos animais com cerca de 1,5 ano de idade. Já nas épocas entre outono e inverno, as pequenas palmeiras, além de mais vulneráveis ao pisoteio do gado, também são mais tentadoras ao paladar dos bovinos que as comem, em meio às forrageiras.
Com o manejo proposto,as novas mudas escapam da ação do pastejo e do pisoteio dos animais pela oferta de forragem de melhor qualidade proporcionada por essa prática. Além disso, como as mudas têm capacidade de rebrote, mesmo as que foram pastejadas continuam a se desenvolver.
A pesquisa
O trabalho de Sosinski começou com observações junto a pesquisadores do Uruguai, onde os butiazais são conservados há mais tempo. A equipe tomou como ponto de partida um estudo sobre o manejo de bovinos naquele país e, a partir de 2013 adaptou o método para aplicação nos butiazais do Rio Grande do Sul. A pesquisa ocorreu durante seis anos em uma área de 54 hectares com butiazais nativos, na Fazenda São Miguel, em Tapes (RS).
Para se ter uma ideia do potencial de regeneração da espécie com esse manejo, foram encontrados de 20 a 30 novos butiazeiros em uma das pequenas parcelas de 400 metros quadrados da área do experimento usadas para contagem das plantas.Algumas parcelas chegaram a apresentar até 400 plantinhas novas. No começo do estudo, há sete anos, a fazenda dos Barros tinha 2,8 mil plantas de Butiaodoratana área do experimento. Hoje, concluída a primeira fase do trabalho, existem 9,3 mil palmeiras, considerando as 6,3 mil que brotaram e cresceram até o momento graças ao manejo do gado. “Estima-se que a fazenda tenha atualmente cerca de 75 mil butiazeiros”, diz Sosinski.
O cientista também observou que as cerca de 90 cabeças bovinas colocadas na área experimental pesavam entre 150 e 180 quilos, o que dava em torno de 15 mil quilos nos 54 hectares, considerado um volume interessante para o tamanho do piquete. “Isso é relativamente muito bom”, considera o pesquisador ao analisar o fato não ter ocorrido prejuízo aos proprietários relacionado à perda de peso dos animais pela mudança do manejo. Ao contrário, ao voltarem para o piquete dos butiazais, os bovinos encontravam bastante pastagem, uma vez que aquela parte da propriedade havia sido poupada do pastejo durante os meses de frio, permitindo a preservação e crescimento do pasto nativo.
“É importante conjugar a restauração do butiazal com a produção pecuária, de forma que o produtor siga colocando o gado nos campos com butiazeiros”, comenta o pesquisador ao alertar que, se os animais forem totalmente retirados das áreas com butiazais, um outro problema poderá ocorrer: sem o pastejo, outras espécies arbóreas vão crescer sem controle e irão competir com os butiazeiros por luz e nutrientes.
No experimento, Sosinski verificou que plantas como a capororoca (Myrsineumbellata), se não forem pastejadas crescem e sombreiam as palmeiras Butiaodorata, impedindo que elas se desenvolvam. Ou seja, o manejo traz equilíbrio do sistema da flora e fauna nos butiazais.
Pesquisa participativa e multidisciplinar
Os seis anos de pesquisa de Sosinski contaram com apoio de equipes multidisciplinares, abordando diferentes aspectos da vida nos butiazais - como os animais e a flora nativos. Além da troca de conhecimento com a pesquisadora uruguaia Mercedes Rivas, da Universidad de La República (Udelar), em Rocha, Uruguai, sobre a condução de trabalhos nesse sentido naquele país, ele reuniu também grupos que vêm atuando no projeto Rota dos Butiazais, liderado pela pesquisadora da Embrapa Rosa Lia Barbieri. O projeto também incentiva a produção de artesanato, sucos e licores feitos a partir das folhas, fibras e frutos do butiazeiro.
Além de alternativa sustentável para a regeneração dessas áreas típicas do bioma e a conservação do campo nativo, o manejo desenvolvido ajuda os produtores a ter nos butiazeiros centenários uma fonte de renda extra - especialmente aqueles que dependem da renda adicional gerada pelo uso dessa palmeira. Há séculos, os butiazeiros geram renda nas propriedades rurais situadas ao longo da chamada Rota dos Butiazais, como conta uma das proprietáriasda Fazenda São Miguel, Carmen Barros, ao destacar a importância socioeconômica e ecológica dos mais de 75 mil butiazeiros em sua propriedade (veja quadro).
Um mar de palmeiras no Pampa gaúcho
Os milhares de butiazeiros da Fazenda São Miguel (registrados em imagens de satélite), uma propriedade secular de 2,9 mil hectares localizada no município gaúcho de Tapes, são para a família Heller Barros “uma reserva de Deus”, conforme relata a matriarca, Nair Heller de Barros, de 97 anos. A história da propriedade e das gerações que lá nasceram e trabalharam e são indissociáveis das palmeiras Butiaodorata. Foi graças aos butiazeiros, no início da década de 1930, que a família garantiu a renda, quando a fazenda foi devastada por uma imensa nuvem de gafanhotos da espécie Schistocercacancellata, que arrasou as lavouras e plantas daquela região. O butiazal seguiu firme.
Essa história é contada pela socióloga Carmen Heller Barros que, com os irmãos, cuida do butiazal como um local sagrado, que abriga um ecossistema valioso por sua flora e fauna. Vivem nesses campos povoados de Butiaodorata animais como graxains, veados, gambás e emas (entre outros típicos do Pampa), sendo que alguns deles são dispersores das sementes do butiá.
A salvo dos gafanhotos
A crina vegetal dessas palmeiras – feita a partir das folhas – foi usada por muito tempo como matéria prima na fabricação de colchões e móveis. A própria fazenda São Miguel tinha fábricas de crina e a comercializava para o resto do Brasil. Foi esse produto que garantiu a renda familiar durante o ataque dos gafanhotos.
Foi por causa da longa relação desses gaúchos com as palmeiras que nasceu o projeto de Sosinski. Carmen Barros relata que ela e os irmãos estavam preocupados com a conservação do butiazal e não sabiam o que fazer com o gado pisoteando os novos butiazeiros que nasciam no campo nativo. Eles precisavam de uma solução técnica, pois não poderiam dispensar a área porque também usavam para pastejo, sendo outra parte da propriedade destinada à cultura do arroz.
“Um dia meu irmão foi até a Embrapa Clima Temperado, em Pelotas, e fez contato com a pesquisadora Rosa Lia”, conta a produtora. Dez anos depois, a família soma, segundo ela, muitas surpresas boas, resultados dos projetos de pesquisa lá desenvolvidos.
Fonte: Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia